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Os contos de fadas e o dilema existencial

Na criança ou no adulto, o inconsciente é um poderoso determinante do comportamento. Quando o inconsciente é reprimido e ao seu conteúdo é negada a consciencialização, então o espírito consciente da pessoa acabará finalmente por ficar em parte esmagado pelos derivativos desses elementos inconscientes. Ou então, ela ver-se-á forçada a manter um controle tão rígido e compulsivo sobre os mesmos que a sua personalidade pode vir a ser gravemente afectada. Mas quando se permite que esse material inconsciente atinja em certa medida a consciência, e possa ser elaborado através da imaginação, o seu potencial para fazer o mal – a nós próprios e aos outros – torna-se muito reduzido; algumas das suas forças podem então ser dirigidas para fins mais positivos. Contudo, a crença paternal dominante é que a criança tem de ser poupada àquilo que mais a perturba: as suas angústias sem forma e nome, as suas fantasias caóticas, enfurecidas ou mesmo violentas. Muitos pais acreditam que só a realidade consciente ou as imagens agradáveis que satisfaçam os desejos é que devem ser oferecidas à criança – que ela deve ser exposta somente ao lado belo das coisas. Porém, um tal alimento unilateral nutre o espírito também só unilateralmente, e a vida real não é bela na totalidade.

Há uma recusa generalizada em deixar as crianças saberem que a fonte de muito do que vai mal no mundo tem a ver com a nossa própria natureza – com a propensão que todo o homem tem para agir agressivamente, associalmente, egoistamente, por raiva ou angústia. Em vez disso, queremos que os nossos filhos acreditem que todos os homens são bons por natureza. Mas as crianças sabem que eles nem sempre são bons; e muitas vezes, mesmo quando o são, prefeririam não o ser. Isto vem contradizer o que os pais lhes dizem, o que faz com que a criança se veja a si própria como um monstro.

A cultura dominante deseja aparentar, especialmente no que diz respeito às crianças, que o lado sombrio do homem não existe, afirmando acreditar num “melhorismo” optimista. A própria psicanálise é encarada como tendo por fim tornar a vida mais fácil – mas isso não foi a intenção do seu fundador. A psicanálise foi criada para habilitar o homem a aceitar a natureza problemática da sua vida sem ser vencido por ela ou sem se entregar à fuga sistemática.

É esta exactamente a mensagem que os contos de fadas trazem à criança, de múltiplas formas: que a luta contra graves dificuldades na vida é inevitável, faz parte intrínseca da existência humana – mas que se o homem se não furtar a ela, e com coragem e determinação enfrentar as dificuldades, muitas vezes inesperadas e injustas, acabará por dominar todos os obstáculos e sair vitorioso.

Os contos modernos para crianças evitam sobretudo os problemas existenciais, ainda que estes representem questões cruciais para todos nós. A criança precisa muito especialmente de sugestões, em forma simbólica, sobre como lidar com estes obstáculos para chegar sem riscos à maturidade. As histórias “inócuas” não mencionam a morte ou a velhice, nem os limites da nossa existência ou o desejo de uma vida eterna. O conto de fadas, pelo contrário, confronta-nos, sem rodeios, com as exigências básicas do homem.

Por exemplo, muitos contos de fadas começam com a morte da mãe ou do pai; nestes contos, a morte cria problemas angustiantes, como a própria morte ou o medo dela o fazem na vida real. Outros contos falam de um pai idoso que decide que chegou a altura de a nova geração tomar as rédeas. Contudo, antes que isso aconteça, o sucessor tem de provar ser capaz e digno. O conto dos irmãos Grimm As três penas começa assim: Era uma vez um rei que tinha três filhos… Quando o rei já estava velho e fraco, pensando no seu fim, não sabia qual dos filhos deveria herdar o trono. Para se decidir, o rei dá aos filhos uma tarefa difícil; o filho que melhor a desempenhar será rei depois da minha morte.

É característico dos contos de fadas expor um dilema existencial, concisa e directamente. Isto permite que a criança enfrente o problema na sua forma mais essencial, ao passo que um enredo mais complexo seria para ela mais confuso. O conto de fadas simplifica todas as situações. As suas personagens são definidas com clareza e os pormenores, a não ser que sejam muito importantes, são eliminados. Todos os caracteres são mais típicos do que invulgares.

Contrariamente ao que acontece nos modernos contos para crianças, tanto a maldade como a virtude encontram-se omnipresentes nos contos de fadas tradicionais. Em praticamente todos eles, o bem e o mal aparecem sob a forma de personagens e acções, pois o bem e o mal são omnipresentes na vida de cada um de nós. Aliás, a propensão para ambos encontra-se em cada ser. É esta dualidade que coloca um problema moral e que exige uma luta para a resolver.

O mal não deixa de ter os seus atractivos – simbolizados pelo poderoso gigante ou pelo dragão, pelo poder da bruxa, pelo da astuta rainha em Branca de Neve – e muitas vezes está temporariamente em ascensão. Em muitos contos de fadas o usurpador consegue, por algum tempo, apoderar-se do lugar que, por direito, pertence ao herói – como as maldosas irmãs n’ A Gata Borralheira. Não é o facto de o malfeitor ser castigado no fim da história que faz com que os contos de fadas sejam uma experiência de educação moral, ainda que isso também seja uma parte da questão.

Nos contos de fadas, como na vida, o castigo (ou o medo dele) é somente uma dissuasão limitada para o crime. A convicção de que o crime não compensa é uma dissuasão muito mais eficaz, e é por isso que nos contos de fadas os maus perdem sempre. Não é o facto de a virtude ganhar no fim que promove a moralidade, mas sim o facto de que o herói é extremamente simpático para a criança, a qual se identifica com ele em todas as suas lutas. Por causa dessa identificação, a criança imagina que sofre com o herói, que vive todas as suas provações e tribulações, triunfando com ele quando a virtude triunfa também. A criança faz tais identificações por si própria, e são as lutas interiores e exteriores do herói que gravam nela a moralidade.

As personagens dos contos de fadas não são ambivalentes – não são boas e más ao mesmo tempo –, como na realidade o somos. Mas uma vez que a polarização domina o espírito da criança, ela domina também os contos de fadas. Uma pessoa é boa ou má, sem meio‑termo. Um irmão é estúpido, outro inteligente. Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, a outra, vil e preguiçosa. Uma é bela, as outras feias. Um dos pais é todo bondade, o outro maldade. A justaposição de personagens opostas não tem por fim dar ênfase ao “bom” comportamento, como seria o caso nos contos de advertência. (Há alguns contos de fadas amorais em que o bem e o mal, a beleza e a fealdade não têm qualquer papel.)

Mas estas personagens polarizadas permitem à criança compreender facilmente a diferença entre ambos os pólos, coisa que ela não poderia fazer facilmente se os protagonistas fossem desenhados mais próximos da realidade, com todas as complexidades que caracterizam as pessoas reais. As ambiguidades têm de esperar até que se tenha estabelecido uma personalidade relativamente firme com base em identificações positivas. Só então é que a criança tem bases para compreender que há grandes diferenças entre as pessoas e que, portanto, tem de fazer uma opção sobre aquilo que quer ser. Esta decisão básica, sobre a qual todo o desenvolvimento posterior da personalidade será erigido, é facilitada pela polarização dos contos de fadas.

As crianças de hoje já não crescem na segurança de uma grande família ou de uma comunidade bem integrada. Assim, mais ainda do que no tempo em que foram “inventados” os contos de fadas, é importante fornecer à criança moderna imagens de heróis que têm de se lançar no mundo sozinhos e que, apesar de não saberem à partida como é que as coisas se vão resolver, encontram lugares seguros, seguindo em frente com profunda confiança interior.

O herói dos contos de fadas tem um percurso solitário durante uns tempos, tal como a criança moderna que frequentemente se sente isolada. O herói recebe ajuda porque está em contacto com coisas primitivas – uma árvore, um animal, a natureza – tal como a criança se sente em contacto com estas coisas, mais do que a maioria dos adultos. O destino destes heróis convence a criança de que, como eles, se pode sentir abandonada no mundo, tacteando no escuro; mas, como eles, no decorrer da sua vida será guiada passo a passo, e receberá ajuda quando necessário. Hoje, mais do que noutros tempos, a criança precisa da confiança oferecida pela imagem do homem isolado, que todavia é capaz de estabelecer relações significativas e compensadoras com o mundo que o rodeia.

Ao mesmo tempo que distrai a criança, o conto de fadas elucida-a sobre ela própria e promove o desenvolvimento da sua personalidade. Tem tantas significações, em tantos níveis diferentes, enriquece a existência da criança de tantas maneiras, que nenhum outro livro é capaz de igualar a quantidade e diversidade de contributos que estes contos trazem à criança.

A maioria dos contos de fadas teve origem em períodos em que a religião era a parte mais importante da vida; assim, eles lidam directamente, ou por dedução, com temas religiosos. As histórias d’As Mil e Uma Noites estão cheias de referências à religião islâmica. Muitos contos de fadas ocidentais têm conteúdo religioso; mas a maior parte destas histórias é hoje desprezada e desconhecida do grande público, porque, para muitos, estes temas religiosos já não despertam, universal e pessoalmente, associações significativas.

O esquecimento em que caiu O filho de Nossa Senhora, uma das mais lindas histórias dos irmãos Grimm, é disso exemplo. Começa exactamente como em Hansel e Gretel: Junto de uma grande floresta vivia um lenhador com a sua mulher. Tal como em Hansel e Gretel, o casal é tão pobre que não pode alimentar-se a si próprio nem à filha de três anos. Comovida com a sua desgraça, a Virgem Maria aparece-lhes e oferece-se para tomar conta da pequena, que leva consigo para o Céu. A pequena vive uma vida maravilhosa até à idade dos catorze anos. Nessa altura, como em variadas versões de Barba Azul, a Virgem confia à pequena as chaves de treze portas, doze das quais ela pode abrir, mas não a décima terceira.

A pequena não resiste à tentação: mente e, em consequência, é mandada de volta para a Terra, muda. Sofre provações severas e está prestes a ser queimada viva quando, desejando confessar a sua má acção, recupera a voz para o fazer. É-lhe dada então pela Virgem a felicidade para toda a vida. A lição da história é esta: uma voz habituada a mentir só nos leva à perdição; é melhor sermos privados dela, como a heroína da história. Mas uma voz habituada a arrepender-se para admitir os erros e dizer a verdade, redime-nos.

Como não é possível saber exactamente em que idade um determinado conto de fadas é importante para uma determinada criança, não podemos decidir qual dos muitos contos deverá ser contado em determinado tempo ou porquê. Só a criança pode determinar isso, através da força das emoções com que reage ao que um conto evoca no seu consciente ou inconsciente.

Naturalmente, os pais começarão por contar ou ler ao filho um conto de que eles próprios gostaram em pequeninos ou de que gostam ainda hoje. Se a criança não mostra entusiasmo pela história, isso significa que os motivos e temas não evocaram nela uma resposta significativa nessa altura da sua vida. Será então melhor contar‑lhe outra história na noite seguinte. Depressa se saberá que determinada história se tornou importante para ela, quer pela sua resposta imediata à mesma, quer por pedir que lha contem mais e mais vezes. Se tudo correr bem, o entusiasmo da criança por essa história tornar-se-á contagioso e a história será importante para os pais, quanto mais não seja porque faz tanto sentido para o filho.

Finalmente, virá o dia em que a criança retirou já tudo quanto podia da sua história preferida, porque os problemas que a tinham feito procurar a história foram substituídos por outros, que encontram melhor expressão num outro conto. Ela pode então perder, temporariamente, interesse por este conto, e gostar muito mais de outro. Para contar contos de fadas é sempre melhor seguir a indicação da criança.

Mesmo que os pais adivinhem correctamente as razões por que o filho se envolveu emocionalmente com determinado conto, deve ser guardada só para si essa descoberta. As experiências e as reacções de uma criança são extremamente importantes e em grande parte inconscientes, devendo permanecer assim até que ela chegue a uma idade em que uma compreensão mais madura seja possível. É sempre inoportuno interpretar os pensamentos inconscientes de uma pessoa, tornar consciente o que ela deseja conservar pré-consciente, e isto é especialmente verdade no caso de uma criança. É tão importante para o bem-estar da criança sentir que os seus pais compartilham as suas emoções, através do gosto pelo mesmo conto, como sentir que os seus pensamentos íntimos não são conhecidos deles até que ela se decida a revelá-los.

Além disso, explicar a uma criança por que razão um conto de fadas é para ela tão cativante destrói o encantamento da história, que depende em grande parte do facto de a criança não saber ao certo porque ficou tão deliciada com ela. E com a perda deste poder de encantamento, vai-se também o potencial da história para ajudar a criança a lutar por si própria e resolver sem ajuda o problema que, em sua opinião, deu sentido à história. As interpretações dos adultos, por mais correctas que sejam, tiram à criança a oportunidade de sentir que foi ela, sozinha, por ouvir e ruminar repetidamente a história, que conseguiu resolver com êxito uma situação difícil. Nós crescemos, encontramos o sentido da vida e confiança em nós próprios por termos compreendido e resolvido os nossos problemas pessoais, e não porque outros no-los explicaram.

Os temas dos contos de fadas não são sintomas neuróticos, algo que importa compreendermos de forma racional, para mais depressa nos vermos livres deles. Esses temas são sentidos como autênticas maravilhas pela criança, porque através deles se sente compreendida e apreciada no seu âmago, nos seus sentimentos, nas suas esperanças e angústias, sem que seja preciso trazer tudo isso à superfície para ser investigado à luz crua de uma racionalidade que ainda está para além da compreensão infantil. Os contos de fadas enriquecem a vida da criança e apresentam‑se com uma qualidade de encantamento, exactamente porque ela não sabe como é que as histórias produziram em si semelhante prodígio.

Continuação: Psicanálise dos contos de fadas III – Um punhado de magia 

Bruno Bettelheim

Psicanálise dos Contos de Fadas

Lisboa, Bertrand Editora, 1991

Excertos adaptados

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