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A necessidade de magia na criança
Do ponto de vista dos adultos e em termos da ciência moderna, as respostas que os contos de fadas dão são mais fantásticas do que reais. De facto, estas soluções parecem tão incongruentes a alguns adultos (que se divorciaram já dos caminhos pelos quais as crianças sentem o mundo), que eles se recusam a transmitir às crianças informações tão “falsas”. Contudo, explicações realistas são normalmente incompreensíveis para as crianças, porque lhes falta a compreensão abstracta necessária para lhes dar um sentido.
As explicações científicas exigem um pensamento objectivo. Tanto a investigação teórica como a exploração experimental demonstraram que nenhuma criança em idade pré-escolar pode verdadeiramente aprender estes dois conceitos, sem os quais a reflexão abstracta é impossível. Conheci muitos exemplos em que, especialmente nos últimos tempos da adolescência, foi necessário apelar para os anos de crença na magia para compensar alguém que se viu prematuramente privado dela na sua infância, depois de lhe terem imposto (em vão!) a estreita realidade. É como se estes jovens sentissem estar agora perante a última oportunidade para compensar uma grave lacuna nas suas vidas; ou que, sem terem passado por esse período de crença na magia, não se achavam aptos a enfrentar os rigores da vida adulta.
Muitos jovens que procuram hoje a evasão súbita através dos sonhos proporcionados por drogas, são iniciados por gurus, acreditam na astrologia, praticam “magia negra” ou, por outra qualquer forma, se escapam da realidade através de devaneios sobre experiências mágicas que melhorarão as suas vidas, foram prematuramente pressionados a encarar a realidade de uma forma adulta. A tentativa de evasão da realidade por estas vias tem as suas causas mais profundas nas primeiras experiências formativas, que os impediram de se convencer pessoalmente de que a vida pode ser dominada por meios realistas.
Satisfação indirecta versus reconhecimento consciente
A criança sente quais dos muitos contos de fadas são a verdade para a sua situação interior de momento (a qual ela não sabe, por si só, manejar), e sente também em que ponto da história esta lhe dá uma achega para poder enfrentar um problema difícil. Mas isso não é imediatamente resolvido, nem se consegue quando se ouve um conto de fadas pela primeira vez. Alguns dos elementos do conto são demasiado estranhos – como têm de sê-lo, a fim de se dirigirem a emoções profundamente escondidas.
Só com a repetição frequente do conto, e quando tenha tido tempo suficiente e oportunidade para se debruçar sobre ele, é que a criança pode aproveitar plenamente o que a história tem para lhe oferecer no tocante à compreensão de si própria e do mundo. Só então as livres associações da criança produzem o sentido mais pessoal do conto; só então o conto a ajuda a resolver os problemas que a oprimem. Por exemplo, quando ouve a história pela primeira vez, a criança não pode projectar-se no papel de uma figura do sexo oposto. É preciso que haja certa distância e colaboração pessoal, durante algum tempo, antes de uma rapariga se poder identificar com o João de João e o Pé de Feijão ou um rapaz com Rapunzel.
Conheci pais cujos filhos reagiam a um conto de fadas dizendo “Gostei”, e assim apressavam-se a contar-lhes outro conto, pensando que mais um conto aumentaria o prazer da criança. Mas o comentário do filho exprimia provavelmente um vago sentimento de que a história tem qualquer coisa de importante para lhe comunicar – qualquer coisa que se perderá se não se ler à criança de novo a história, e se não se lhe der tempo para a aprender. Desviando os pensamentos da criança prematuramente para uma segunda história, poder-se-á desfazer o impacto da primeira, ao passo que, fazendo-se isso mais tarde, se poderá antes aumentá-lo.
Quando se lêem contos de fadas a crianças, numa aula ou em bibliotecas durante a hora de recreio, as crianças parecem fascinadas. Mas, muitas vezes, não se lhes dá a oportunidade para contemplarem os contos ou para reagirem; elas são imediatamente arrebanhadas, ou para outra actividade ou para outra história diferente da que lhes contaram antes, o que dilui ou destrói a impressão que o conto criou. Falando com crianças depois de uma experiência destas, parece que tanto fazia que a história fosse contada como não, pelo efeito nulo que foi obtido. Mas quando o narrador da história dá às crianças tempo suficiente para reflectirem sobre ela, para se submergirem na atmosfera que a narrativa cria, e quando elas são encorajadas a falar no assunto, então conversas posteriores revelam que, emocional e intelectualmente, a história lhes oferece muito.
Tal como os pacientes dos curandeiros hindus eram solicitados a contemplarem um conto de fadas para encontrarem uma saída para a escuridão interior que encobria os seus espíritos, também à criança se deve dar a oportunidade de – vagarosamente – assimilar um conto de fadas, fazendo a junção das suas próprias associações com o conto.
Diga-se de passagem que esta é a razão por que os livros ilustrados, hoje tão preferidos por adultos e crianças, não são o melhor serviço que se pode prestar à criança. As ilustrações distraem em vez de ajudarem. O estudo dos livros ilustrados demonstra que as gravuras desviam o processo de aprendizagem em vez de o fomentarem, porque as ilustrações afastam a imaginação da criança daquilo que, por si próprias, e sem ajuda, elas sentiriam graças à história. A história ilustrada perde muito do conteúdo pessoal que poderia trazer à criança que lhe aplicasse somente as suas próprias associações visuais, em vez das de quem as desenhou.
Também Tolkien pensava que, por melhores que sejam, as ilustrações pouco bem fazem aos contos de fadas… Se a história diz: “Ele trepou a colina e viu o rio no vale, lá em baixo”, o desenhador poderá apreender, ou quase apreender, a sua própria visão da cena, mas cada ouvinte terá formado o seu próprio quadro, que será feito de todas as montanhas e rios e vales que jamais viu, mas especialmente a Colina, o Rio, o Vale que foram para ele a primeira representação da palavra. Eis por que um conto de fadas perde muito do seu sentido próprio quando as figuras e as ocorrências têm a substância dada pelo desenhador e não pela imaginação da criança. Os pormenores, sem igual, derivados da sua vida individual, com os quais o espírito do ouvinte retrata a história que lhe contam ou que lhe lêem, transformam-na numa experiência muito mais pessoal. Tanto os adultos como as crianças preferem frequentemente o caminho fácil de alguém que, por eles, assume a tarefa de imaginar o cenário do conto. Contudo, se deixarmos o desenhador determinar a nossa imaginação, ela será menos nossa e o conto perde muito do significado pessoal.
Perguntar a crianças, por exemplo, como era o monstro de que ouviram falar na história que lhes contaram, dá lugar às mais variadas formas de personificação: enormes figuras pseudo-humanas, pseudo-animais, figuras que combinam certos traços humanos com outros animais, etc. –, e cada um destes pormenores tem enorme sentido para a pessoa que, no seu espírito, criou determinada realização pictórica. Por outro lado, ver o monstro pintado pelo artista, conformemente à imaginação dele, que é bem mais completa se a compararmos com a nossa própria imagem vaga e fugidia, defrauda-nos um pouco. A ideia do monstro poderá então deixar-nos totalmente indiferentes, sem nada de importante para nos dizer, ou poderá amedrontar-nos, não tendo qualquer significado para além da angústia.
Continuação: Psicanálise dos contos de fadas – A importância da exteriorização
Bruno Bettelheim
Psicanálise dos Contos de Fadas
Lisboa, Bertrand Editora, 1991
Excertos adaptados